“Dormir tarde; comer batata frita; vestir roupas decotadas; assistir a programas fúteis; dançar com amigos; colocar o dedo no nariz; debater polêmicas; acreditar que está certa; acreditar; sorrir sem motivo”. Esses são alguns dos itens do seu inventário. A lista que ela alimenta após cada briga para não se esquecer das proibições que o marido lhe impõe. Poderia ser um simples diário, não fosse tão nocivo.
Quando se casaram, ele admirava nela a autenticidade, ela admirava seu comportamento centrado. Ela cinema, ele casa; ela festa, ele cama; ela batata frita, ele academia. Os opostos podem se atrair ou, ao menos, se respeitar. Não era o caso dos dois. A matemática para eles era simples: ele adição, ela subtração. Veja:
Ele adição: “Venha pra cama”. “Precisamos dormir”. “Essa comida não é saudável”. “Não converse demais”. “Ria contida”. “Seja clara”. “Me entenda!”.
Ela subtração: “Tudo bem, já estou indo”. “Ok”. “Concordo”. “Não farei”. “Uhum”… “Entendi”.
Ele somando-a ao seu querer, ela subtraindo-se. E assim são unidade: ele completa-se com ela – agrega os pedaços que convém, nem sequer nota o que restar. Ela, de tanto ouvir os “não” que ele impunha, calou-se. Antes tão boa com as palavras e agora tão confusa. Perdida de tanto se doar.
Nesta manhã, contudo, havia algo de especial no seu olhar. Ela se levantou e, ao jogar água no rosto, se olhou no espelho e pensou num poema da Cecília Meireles. Vasculhou as gavetas e encontrou. Leu algumas vezes.
“Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?“
Uma lágrima correu o rosto. “Que face?”, pensou.
A relação era cômoda: o tempo a condicionou às vontades dele. Ela assumiu o papel de esposa submissa e ele o de bom marido. Funcionava enquanto ela obedecia. Ao menor desvio, o olhar de desaprovação doía mais que qualquer palavra. E assim ela foi se enquadrando tendo ele como moldura, e perdendo a própria cor. “Alguém tem que ceder na relação”, repetia a si mesma como alento. Mas hoje questionou: “Sempre o mesmo alguém?”.
Quase não se concentrou no trabalho. Aquele pensamento ficou ecoando: ela pintura, ele moldura. Mas quem imagem?
De volta a sua casa correu para o quarto e, mais uma vez, olhou o inventário: meio chorando, meio sorrindo relembrou os pedaços de si que não mais possuía. Brigavam por futilidades, mas a cada novo pedaço deixado pelo caminho menos de si sobrava. Entendeu que não eram os fatos, era a lógica: ele precisava de alguém para ser unidade, e ela necessitava ser alguém. Ele acreditava em metade da laranja. Sugava-a! Ele percorria o mundo com espelhos, procurando em outros se reconhecer. Encontrou nela a fragilidade necessária para impor seu reflexo. Meio chorando, meio sorrindo, ela se voltou para o espelho. Viu a face, viu a moldura, viu os tons de cinza. Totalmente infeliz.
Nos últimos anos tinha deixado sua vida desbotar. Pensava sempre que a culpa era dele: ele a submetia, controlava, menosprezava. Mas e ela? Tão indefesa assim? Nem tanto.
Naquela noite, se vestiu como quis e fez batata frita para o jantar. Maquiou-se. Escolheu, ela própria, a moldura e as cores para se fazer. Estava à espera do marido decidida a conversar. “Hoje vou recuperar a minha face”, pensou sorrindo. “E se ele não gostar? Censurar?”, se questionou. “Eu sei em que espelho me reconhecer!”.
Pela primeira vez em tempos se sentiu aliviada e segura. De onde estava era possível ver seu reflexo no espelho. Sorriu. Leu o inventário pela última vez.
“Não faça! Não coma! Não veja! Não vá! Não vista! Não seja! Não pense!”.
Concluiu que para conviver acabou sendo o que não era. “Com viver?”. Queria, na verdade, viver… com ou sem. Mas sem si mesma, não dá.
Cansou!
Rasgou o inventário. Qual fosse o resultado da conversa, ela estava pronta para recuperar todos os seus pedaços.
Texto escrito pelo terapeuta comportamental Samuel Silva, membro da equipe Ghoeber Morales Terapia & Coaching