Não digo que estava atrasado já que essa não é condição para que eu corra. Nunca foi. Fato é que eu estava a caminho da faculdade e passava entre uma dúzia de mangueiras que vigiam o caminho. Ventava. Nem frio, nem quente: úmido. Chovera há pouco, e algumas gotas vagavam desgarradas. Durante todo aquele mês as árvores estavam em flor, e naquela manhã nublada alguns frutos tímidos se mostravam. Meus braços, num movimento ensaiado, impulsionavam meus passos: ora o direito para frente, ora o esquerdo – contínuos, opostos, obstinados.
Foi quando o incidente aconteceu: uma corrente de ar menos sutil fez com que um dos frutos saltasse da copa de uma das árvores rumo ao chão e acertasse, de forma intermediária, minha mão. Tal foi a intensidade que a pequena manga desarranjou o sincronismo das idas e vindas e, por meio de um pequeno roxo, estabeleceu a veracidade do encontro.
Certa noite, meses mais tarde, passava pelo mesmo local conversando com uma amiga sobre fatos cotidianos quando, subitamente, uma rajada de vento animou as árvores e refrescou-me a memória. Relatei o caso da manga. Entre poucos risos minha amiga – uma poetiza dessas de papeis avulsos rabiscados – contou que conhecia e já havia contemplado em um de seus escritos algo sobre folhas suicidas, mas nunca mangas. Refleti e manifestei minha objeção (não que a manga me cause rancor, de forma alguma): “-Fui vítima de uma manga assassina! Foi um ataque. Não era apenas suicida, era kamikaze!”. Alguns segundos e a síntese brotou em contrapartida: “Verdade, folhas são suicidas, mangas kamikazes!”.
Instigante, não?
Durante a noite peguei-me a matutar como é curioso esse devir entre experiência cotidiana e divagar poético. O que seria dos poemas e devaneios não fosse o vivenciado diariamente? O habitual não cultiva em sua gênese todo o poético? Folhas e mangas são fatos, materialidade, banalidades. Seus movimentos poderiam passar despercebidos no caos cotidiano, não fossem eles capazes de nos atravessar e provocar afetações diversas: da fascinação a mais sublime indiferença.
Penso que a criatividade não seja fruto de uma instância interna e desconhecida que só os mais providos possuem. Ela floresce do contato, das apresentações, dos reconhecimentos. Todos podem ser criativos! Basta estar ativo no mundo. Relacionar-nos com aquilo que nos cerca implica em transcender, por meio do prazer ou da dor, seus significados e, em movimentos de negação ou afirmação, produzir o novo. Novo que é mutável, adaptável, reciclável. Ciclos e releituras da vida.
Folhas suicidas, mangas kamikazes. Cenas cotidianas e devir poético. Na verdade, não se trata de permitir que o toque adentre a pele?
Texto escrito por Samuel Silva, terapeuta comportamental da Equipe Ghoeber Morales Terapia & Coaching. Este texto foi originalmente escrito em 2010 e especialmente adaptado para o blog.