“Resiliência s.f. (figurado):
Habilidade de se adaptar com facilidade às intempéries, às alterações ou aos infortúnios”.
Era um dia quase comum no trabalho. Eu era psicólogo/coordenador de uma unidade de acolhimento institucional para crianças de 0 a 6 anos (lar para crianças que, devido a grave violência ou negligência, não puderam mais continuar sob os cuidados das pessoas com as quais conviviam). Conhecido também como orfanato ou abrigo. E naquela tarde acontecia um evento muito esperado por todos: estávamos no cinema.
Fila, mãos dadas, pipoca, expectativa, novidade, muitos risos. A realização do sonho de conhecer o cinema! Começou! Olhinhos atentos e fixados na tela acompanhando a atração.
Contudo, ao meu lado, a pequena Lúcia estava desconfortável. Agarrou a minha mão. Forte! Mal conseguia comer sua pipoca. O filme, apesar de infantil, trazia como antagonistas dragões cuspidores de fogo numa caverna escura. Além disso, o conflito principal dizia de uma criança entre o amor do pai e a descoberta, nessa caverna sombria, da história por trás do abandono da mãe. Não sei se pelos dragões ou pelo espelho diante do qual Lúcia estava refletida, mas fato é que ela me disse com a voz embargada: “- Tô com medo… Quero sair”.
Não teve outra, saímos. Eu curioso com o desfecho do filme, ela aliviada por não ser mais confrontada com tantos temores – já bastavam os seus. (Lúcia tinha três anos e três irmãos. O pai não declarado e a mãe negligente. Ela e a irmã foram para uma unidade de acolhimento e os dois irmãos para outra. O prognóstico? Seriam separados para adoção).
Descer…
Eu e ela. Guia e turista. O shopping a nosso dispor. Foi então que teve início a experiência mais marcante daquele dia. De dias. De uma vida, talvez! Lúcia, pequenina, nunca havia ido a um shopping. Por quase uma hora passeamos pelo local. Eu esperando o tempo passar, ela vivendo o tempo que passava.
Viu a escada rolante e um estranhamento tomou conta: “- O que é isso?”. “- Uma escada que vai subindo”, respondi. “- Pra onde?”. “- Para o segundo andar. Quer ver?”. “- Não…”. Teve medo, recuou. Dei um sorriso e fui lentamente levando-a em direção à escada: “- Não precisa ter medo”. Segurou firme minha mão, fechou os olhos e foi! Já na escada, olhou ao redor e a expressão de medo deu espaço à curiosidade. Na chegada, pulou. “- É legal! Vamos de novo?”. “- Pronto, encontrou uma diversão”, pensei equivocadamente.
Subir e descer.
Continuamos a andar pelo shopping. Eu e ela. Guia e turista empolgada. Lindo ver o encantamento daquela criança diante daquele momento. O brilho nos seus olhos anunciava o fascínio diante daquilo que observava: tudo era motivo para bater palmas, exclamar “- Nossa, que lindo”, balançar as chuquinhas de cabelo e sorrir.
“- Êba, a escada que anda! Vamos nela outra vez!”. E o medo deu espaço à admiração, mas por quê?
Descer e subir.
De bijuterias a joias; de departamento a grifes. Indo e vindo a apontar, olhar. Mais que isso: admirar. Lúcia dizia: “- Essa bolsa pra mim, esse óculos pra você, esse vestido pra minha irmã, esse skate pro meu irmão…”. Hesitou. Marejou. Esse irmão é aquele que talvez ela nunca mais veja. Olhou para mim e sorriu. Do alto dos seus três anos de idade, continuou resiliente o bastante para seguir. Viu a escada rolante e o brilho retornou aos seus olhos: “- Vamos subir de novo?”.
Subir – era quando ela mais sorria.
Fiquei pensando naquela ação: subir escadas. Usamos isso como metáfora nossas ações rumo a conquistas, à realização de sonhos. Quais seriam os sonhos que Lúcia almejava realizar? Afinal, a vida é parecida com uma escada rolante: o seu devir é sempre ir. Mesmo que permaneçamos inertes, o tempo passa, as coisas mudam e o agora se renova. E enquanto estacionar é uma opção desrespeitada, dar passos é uma ação impulsionada. Na vida, a gente precisa seguir. Então que seja com força!
E Lúcia, mais que subir escadas, sabia olhar de fato a vida: a felicidade estava no presente, naquele momento. Não se muda o passado. Lúcia não fica inerte na escada, deixando a vida seguir enquanto rumina seus rancores e dores. Lúcia segue! Lúcia sonha e vai…
Ela e eu. Resiliência e aprendizado. Percebi que ela era quem guiava. E fiquei feliz por ser convidado a seguir.
Subir…
Viu a escada rolante: “- Vamos, por favor!”.
“Mais uma vez…”, eu pensei quase entediado. Para mim, o simbolismo já estava pronto. Tolo! Eu na realidade não entendia a sua insistência em subir as escadas até que, ao chegar ao topo, ela disse: “- Aqui em cima é tão bonito!”. Então, finalmente, compreendi: quanto mais alto, mais próximo do céu – e lá todos os sonhos são possíveis.
Lúcia encontrou o céu ao subir escadas rolantes. E nós, onde encontramos?
TEXTO ESCRITO POR SAMUEL SILVA, TERAPEUTA DA EQUIPE GHOEBER MORALES TERAPIA & COACHING.